Chega
ao Brasil a exposição que abre as comemorações dos 200 anos de nascimento do cientista que explicou como a vida evolui na
Terra. Ele se tornou um herói da racionalidade
Gabriela Carelli e Leoleli Camargo
A
história da viagem dele é quase tão conhecida e reverenciada quanto a de
Cristóvão Colombo. O naturalista inglês Charles Darwin iniciou em 1831 uma
viagem pelo mundo a bordo do Beagle, um pequeno navio de exploração
científica. Quando voltou à Inglaterra, cinco anos depois, ele trazia na
bagagem um conjunto de idéias revolucionárias que mudariam para sempre a
geografia da alma humana tanto quanto Colombo mudou a geografia terrestre.
Darwin, como se sabe, é o autor da teoria da evolução. A histórica viagem de
Darwin é o tema central de uma imponente exposição que leva o seu nome,
inaugurada na semana passada no Museu de Arte de São Paulo (Masp), e que
permanecerá em cartaz até 15 de julho. A mostra, montada pela primeira vez em
2005, no Museu Americano de História Natural, em Nova York, reúne reproduções
de mais de 400 itens relacionados ao naturalista e à sua viagem no Beagle,
entre animais, plantas, fósseis e paisagens. A exposição atrai sobre Darwin a
atenção que ele merece como um herói da razão e um inimigo da superstição e da
ignorância.
Tamanha
foi a força das revelações de Darwin sobre a origem e a transformação do mundo
animal, das plantas e, em especial, da humanidade, que quase ninguém consegue
ter uma visão muito clara hoje em dia de como se pensavam essas coisas antes
dele. Poucas revoluções tiveram esse poder. A prova de que a Terra é redonda é
uma delas. Parece natural hoje em dia nos vermos habitando uma esfera que gira
sobre o próprio eixo e em torno do Sol. Mas por milênios se acreditou em uma
Terra plana como um campo de futebol sustentada pelos ombros fortes de um titã
que se apóia sobre os cascos de tartarugas. A evolução lenta das espécies ao
longo das eras formando linhagens que desembocam nos atuais seres vivos. Isso é
o Darwin. Antes dele? Acreditava-se na versão religiosa segundo a qual por
volta do ano 4004 a.C., de uma só tacada, Deus criou o homem, a mulher e os
demais seres vivos exatamente como eles são agora. Essa visão pré-darwinista,
que só sobrevive dentro dos círculos religiosos, tem conseguido ultimamente uma
projeção assustadora. À luz desse retrocesso, relembrar as conquistas de Darwin
torna-se um imperativo.
Quando
Darwin lançou A Origem das Espécies, em 1859, o primeiro de seus livros
que explicam a teoria da evolução, cientistas e intelectuais de todos os
matizes foram obrigados a se posicionar diante dos argumentos do naturalista.
Apesar do rigor científico das pesquisas que conduzira, suas conclusões
ofendiam a todos. Conceitos arraigados havia séculos na biologia, como o de que
as espécies não mudam ao longo do tempo, caíram por terra diante dos argumentos
de Darwin. A criação do mundo como descrita na Bíblia foi desmontada.
Entre todas as suas propostas, a mais difícil de engolir por seus
contemporâneos foi a de que o homem não é um animal superior a todos os outros
e tem ancestrais em comum com os macacos. "A publicação de A Origem das
Espécies destituiu a vida humana de qualquer superioridade em relação aos
animais, enterrou o conceito de divindade e pôs fim a milhares de anos de
irracionalidade na comunidade científica e em parte da sociedade", disse a
VEJA o filósofo Philip Kitcher, da Universidade Columbia e autor do livro Living
with Darwin (Vivendo com Darwin). Os ataques às idéias de Darwin
prosseguiram por todo o século XX. O naturalista foi acusado de solapar os
valores tradicionais da sociedade e de defender o determinismo genético. Os
sociólogos o criticavam por reduzir a complexidade social ao resultado de ações
individuais, instintivas e egoístas.
Depois de
quase 150 anos da publicação de A Origem das Espécies, a vitória das
idéias de Darwin é inequívoca. Entre os grandes nomes que revolucionaram a
maneira de pensar, como Karl Marx e Sigmund Freud, Darwin é o único cujas
idéias ainda servem de base sólida para avanços extraordinários do
conhecimento. Até a teoria geral da relatividade, de Albert Einstein, tem de
travar uma queda-de-braço constante com seus adversários, os teóricos da física
quântica. Darwin só tem inimigos fora da ciência.
O
desenvolvimento da genética, a partir do início do século XX, ajudou a explicar
como funciona a transmissão das características hereditárias. O que Darwin tem
a ver com isso? Muita coisa. A possibilidade de transmissão de características
genéticas de uma geração à seguinte foi intuída por Darwin, mas ele não viveu o
suficiente para ver esse mecanismo ser demonstrado. "Foi necessário um
século de descobertas para que a teoria da evolução de Darwin se comprovasse
plenamente, em todos os seus aspectos", disse a VEJA o biólogo David
Mindell, da Universidade de Michigan.
O caminho
de Darwin até completar suas teorias foi o do estudioso aplicado. Já a
trajetória do homem por trás do cientista foi acidentada. Embora tivesse
começado a escrever A Origem das Espécies em 1838, ele demorou 21 anos
para publicar o volume. O naturalista sabia que suas idéias cairiam como uma
bomba sobre uma sociedade habituada a buscar a verdade nas páginas da Bíblia.
Em 1844, ele escreveu a um amigo dizendo que divulgar suas idéias seria
"como confessar um assassinato". Em sua consciência, Darwin – que era
religioso – debatia-se com questões morais aflitivas. Na juventude, pretendia
tornar-se sacerdote. Foi com espanto que viu os geólogos de seu tempo concluir:
que a Terra surgiu há milhões de anos (hoje se sabe que são 4,5 bilhões), e não
há 6.000 anos, como querem os religiosos. À medida que seus próprios estudos
sobre a evolução das espécies se desenvolviam, entravam em choque com todos os
dogmas religiosos. Diante das idéias de Darwin, sua mulher, Emma, com quem teve
dez filhos, temia que o casal fosse separado na eternidade – ela subiria aos
céus e ele desceria ao inferno. O naturalista debateu-se com as questões da fé
durante toda a vida. Por fim, declarou-se agnóstico.
As idéias
de Darwin, aperfeiçoadas por seus discípulos ao longo de 150 anos, são hoje um
consenso entre os biólogos. Mas continuam a incomodar o pensamento religioso.
Muitas descobertas da ciência no último século, como o surgimento do universo
através da explosão primordial, o Big Bang, de alguma maneira se acomodaram em
meio aos dogmas da fé. No caso da gênese humana, é diferente. A teoria de que
todas as formas de vida nasceram da "sopa primeva" e evoluíram ao
longo dos milênios se choca frontalmente com o maior dos dogmas, o que reza que
o homem é a criação suprema de Deus e foi feito à sua semelhança. Neste início
do século XXI, em que se observa uma busca intensa pela espiritualidade e pelo
misticismo como antídoto às atribulações da vida moderna, a ira das religiões
contra Darwin tem se acirrado. Nos Estados Unidos, onde 54% dos adultos dizem
descender de Adão e Eva, segundo um levantamento recente do Instituto Harris
Poll, menos da metade das pessoas crêem na teoria da evolução de Darwin. Muitas
escolas americanas, nas aulas de ciências, decidiram substituir os ensinamentos
de Darwin por uma variante do criacionismo batizada de "design
inteligente". Segundo essa teoria, há elementos na natureza, como o olho
humano, que têm uma estrutura tão engenhosa que só podem ter sido criados por
um projetista, ou seja, um ser superior.
As
escolas infantis russas também vêm sendo palco de campanhas contra o
darwinismo. Há poucos meses, manifestando seu apoio a um grupo de pais de
alunos que processou uma escola por manter apenas a teoria da evolução das
espécies no currículo, o patriarca da Igreja Ortodoxa russa declarou que a
teoria de Darwin é "baseada em argumentos deturpados" e que "não
há provas concretas de que uma espécie possa se transformar em outra". O
episódio que melhor simboliza a resistência das religiões a Darwin ocorre
atualmente no Quênia e envolve o mais completo esqueleto humano pré-histórico
já descoberto, desenterrado em 1984 e batizado de Turkana Boy. Um dos
principais líderes evangélicos do Quênia, o bispo Boniface Adoyo, recusa-se a
expor o achado arqueológico. Ele alega que não descende do Turkana Boy nem de
algo que se pareça com ele.
Há um
mês, o papa Bento XVI entrou na discussão ao lançar um livro no qual reflete
sobre o surgimento do universo e do homem. O pontífice afirma que a teoria da
evolução não pode ser provada de modo conclusivo. O papa escreve também que a
forma como a vida se desenvolveu indica uma "razão divina" que não
pode ser explicada apenas por métodos científicos. Alguns cientistas buscam
conciliar Darwin e a fé. O biólogo americano Francis Collins, um dos
responsáveis pelo mapeamento do DNA humano, é o mais proeminente entre os
devotos de Darwin que assumem também sua fé religiosa. "Se Deus escolheu
usar o mecanismo da evolução para criar a diversidade de vida que existe no
planeta, quem somos nós para dizer que ele não deveria ter criado o mundo dessa
forma?", argumenta Collins. É provável que o embate entre Darwin e as
religiões nunca arrefeça. A fé humana já se provou resistente a todos os argumentos
da lógica. Por outro lado, o edifício científico construído por Darwin, como se
pode observar na exposição montada no Masp, é grande demais para ser renegado.
Fonte: Veja, 09/05/2007
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