A resistência de alguns grupos religiosos à evolução
é um problema que me deixa simultaneamente perplexo e entristecido.
Como racionalista de carteirinha e cientista militante, tenho
dificuldade em entender essa situação. Como pode um indivíduo pensante
desprezar evidências empíricas gritantes e concretas para adotar em seu
lugar um pensamento anticientífico, com base apenas em revelações e
escrituras milenares de origem obscura que alegam ser de autoria divina?
O que considero necessário não é a ciência da evolução
se modificar com o objetivo de se tornar palatável para algumas crenças
religiosas. O importante é que as religiões adaptem suas doutrinas para
lidar com a realidade da evolução, assim como tiveram de se adaptar à teoria heliocêntrica do Sistema Solar 500 anos atrás.
É absolutamente incontestável o
fato
da evolução. Não se trata de uma simples
teoria
da evolução. Dados paleontológicos, geológicos e fisiológicos já forneceram ampla evidência da origem única da vida na Terra e de sua evolução
progressiva para formar as milhões de espécies de animais e plantas que
aqui habitam. Mas a genômica comparada foi a cereja no topo do sorvete,
o elemento que nos deu a prova final da verdade incontestável da evolução.
Evolução comparada
Os dados gerados pelo Projeto Genoma em humanos e em outros
organismos mostraram que a sequência de DNA do nosso genoma é 99%
idêntica à do chimpanzé (!), além de ter em comum 65% com o camundongo
(!!), 47% com a mosca de frutas
Drosophila melanogaster
(!!!), 20% com uma pequena mostarda chamada
Arabidopsis thaliana
(!!!!) e até 15% igual à da levedura
Saccharomyces cerevisiae
(!!!!!), que produz para nós o pão e a cerveja.
Esse alto grau de compartilhamento genômico mostra que toda a
biosfera é, como nós, herdeira de um genoma primordial que deu origem ao
primeiro ser vivo na Terra, a partir do qual todos os outros derivaram.
Não somos o produto final e perfeito da criação, com direito divino de
destruir nossos primos animais e plantas a nosso bel-prazer. Somos parte
de uma rede de vida e, se esfacelarmos essa rede, destruiremos a nós
próprios. A consciência do nosso parentesco genômico com os outros
organismos terrestres, da origem única e da herança do DNA que une todos
os seres vivos deve nos motivar para tratar o nosso planeta com
renovado respeito.
Ademais, a similaridade genômica vai além do plano estrutural
do DNA e se estende ao nível funcional. Por exemplo, há alguns anos um
aluno do meu laboratório de pesquisa (Túlio M. Santos) desenvolveu sua
tese de doutorado em torno de um gene chamado
SmRho
isolado do verme
Schistosoma mansoni
(o parasita causador da esquistossomose, doença que aflige centenas de milhões de pessoas em todo o Terceiro Mundo).
Para verificar se
SmRho
era funcionalmente o mesmo gene homólogo já anteriormente bem conhecido no
Saccharomyces cerevisiae,
usamos primeiramente técnicas de engenharia genética para
deletá-los das leveduras – com isso, elas se tornaram incapazes de se
dividir e de formar colônias (ver figura).
Então, transferimos para as leveduras doentes o gene
SmRho
do parasito. Eureca! As leveduras voltaram a crescer e a formar colônias quase normais. Em outras palavras, o gene
Rho
do verme funcionava perfeitamente na levedura, da qual estava
separado evolucionariamente há centenas de milhões de anos.
Darwin e a religião
Como todos sabem, em 2009 comemoramos
200 anos do nascimento de Charles Darwin
e 150 anos da publicação da
Origem das espécies.
De fato, nos últimos meses temos sido expostos pela imprensa a
uma miríade de artigos sobre o grande cientista, a vasta maioria deles
infelizmente contendo afirmações bombásticas e errôneas, escritas por
pessoas que nunca leram Darwin e não entendem nada de genética
evolucionária. Um dos pecados sensacionalistas mais comuns é afirmar que
“Darwin matou Deus”. Besteira pura!
Para entendermos a relação de Darwin e da evolução
com a religião, vamos fazer um desvio pela física, com uma história
contada pelo astrofísico americano Neil de Grasse Tyson, do Museu
Americano de História Natural de Nova Iorque em seu excelente artigo “O
perímetro da ignorância”
(The perimeter of ignorance),
publicado em 2005 na revista
Natural History.
A lei da gravidade, desenvolvida pelo genial Isaac Newton
(1643-1727), permite que seja calculada a força de atração entre dois
corpos celestes. Assim, é possível traçar as órbitas dos planetas em
torno do Sol. Entretanto, os planetas também exercem forças de atração
entre si. Até Plutão, que desde 2006 nem é mais considerado um planeta,
exerce gravidade sobre a Terra. Isso cria uma rede de atrações mútuas
que modifica as órbitas dos planetas e é extremamente difícil de
computar.
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Pierre-Simon de Laplace, em retrato pintado Madame
Feytaud, parte da coleção da Academia de Ciências, Paris, França.
Laplace expandiu o perímetro de ignorância que tolhia Newton,
demonstrando que equações que continham as forças gravitacionais de
todos os planetas demonstravam um sistema solar estável.
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Pois bem: quando Newton tentou lidar com tudo isso em suas
equações, chegou à conclusão de que o Sistema Solar era muito instável e
que os planetas deveriam ter se precipitado sobre o Sol (o que
obviamente não tinha acontecido). Ele então escreveu em 1687 nos
Principia mathematica,
sua obra mais importante: “Não é possível conceber que meras
causas mecânicas possam gerar tantos movimentos regulares... Este
maravilhoso sistema... só poderia operar sob o domínio de um Ser
poderoso e inteligente”
As coisas ficaram assim por mais de um século até que, em
1825, Pierre-Simon de Laplace, na França, conseguir provar
matematicamente a estabilidade do Sistema Solar em seu tratado em cinco
volumes
Mecânica celeste,
que ofertou a Napoleão Bonaparte. Segundo a lenda, o imperador
leu a obra (naquela época os líderes de países eram aparentemente
cientificamente alfabetizados – bons tempos...) e perguntou a Laplace
por que não havia nenhuma menção a Deus. A resposta de Laplace foi: “eu
não tinha necessidade de tal hipótese”!
O mesmo se passou com Darwin. Em momento algum ele propôs que
Deus não existia. Ele simplesmente não tinha necessidade daquela
hipótese para explicar a origem dos seres vivos e a grande variedade de
espécies no mundo natural. De fato, ele escreveu na
Origem das espécies:
“Existe um desenho aparente nos organismos vivos. Mas a
seleção natural é suficiente para explicar isto. Não é necessária a
hipótese da existência de um desenhista” (a propósito, o uso da palavra
“desenhista” por Darwin remete-nos ao argumento de William Paley, que
será apresentado mais à frente nesta coluna).
Evolução e religião
Assim, a evolução por seleção natural é perfeitamente compatível com a crença na existência de Deus.
Os evolucionistas estão preocupados em entender a geração da
diversidade dos seres vivos na Terra e não têm qualquer desejo – ou
tempo – para se intrometer em problemas espirituais. Parafraseando
Galileu Galilei, podemos dizer que a preocupação de quem estuda a evolução é entender como as coisas andam na Terra e não entender como se ganha o céu...
Apenas algumas denominações protestantes fundamentalistas
fazem uma interpretação literal estrita, criacionista, do livro do
Gênesis
na Bíblia que os leva a rejeitar em princípio a evolução
biológica. Para eles a Terra (e todo o universo) tem menos de 10 mil
anos (danem-se os dinossauros e toda a evidência fóssil) e Deus criou o
homem diretamente!
No seu livro
Os anais do velho testamento,
publicado em 1650, o bispo inglês James Ussher calculou que
Deus criou o universo na véspera do dia 23 de outubro de 4004 a.C. Até o
final dos anos 1970 todas as Bíblias colocadas em quartos de hotel nos
Estados Unidos pela Gideon Society continham essa estimativa, que também
fez parte da arguição a que Clarence Darrow submeteu William Jennings
Bryan no famoso julgamento de Scopes, no Tennessee, em 1926.
Esse julgamento foi importantíssimo na história do desenvolvimento do ensino de evolução em escolas públicas nos Estados Unidos. O excelente filme
O vento será sua herança
(1960), com Spencer Tracy, conta a estória do julgamento de forma ficcional.
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Imagem do filme
O vento será sua herança,
versão ficcionalizada do julgamento de Scopes, no
Tennessee, em 1926. Na cena, Clarence Darrow (Spencer Tracy) argui
William Jennings Bryan (Fredric March) sobre o cálculo feito pelo bispo
inglês James Ussher de que Deus criou o universo na véspera de 23 de
outubro de 4004 a.C. Esse julgamento foi importantíssimo na história do
desenvolvimento do ensino de evolução em escolas públicas nos Estados Unidos.
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Desenho inteligente (?)
Em 1987 a Corte Suprema dos Estados Unidos decidiu que a necessidade do ensino do criacionismo ao lado da evolução
nas escolas públicas era incompatível com a separação de Estado e
Igreja. Assim, os fundamentalistas americanos tiveram de mudar a sua
estratégia contra o ensino da evolução, tirando a ênfase do aspecto religioso e adotando uma argumentação “científica”: o chamado “desenho inteligente”.
Na verdade este argumento não tem nada de novo (nem
científico), pois foi originalmente proposto pelo filósofo inglês
William Paley (1743-1805). No seu livro
Teologia natural,
ele apresentou o seguinte argumento a favor da existência de Deus (tradução minha):
”[…] imagine que eu pise em uma pedra e que alguém me
pergunte como ela foi parar naquele lugar; se eu responder que do meu
ponto de vista ela sempre esteve naquele local, não seria possível
demonstrar qualquer absurdo na minha resposta. Mas imaginem que eu
encontre um relógio no chão e que me perguntem como ele foi parar lá. Eu
não pensaria na mesma resposta. […] Deve ter havido, em algum tempo e
lugar, um artífice ou artífices que fizeram o relógio [...], que
entenderam seu uso e desenharam sua construção.”
A versão moderna do “desenho inteligente” argumenta que
existem várias estruturas nos seres vivos que são irredutivelmente
complexas, ou seja, compostas de elementos harmônicos e interativos que
contribuem para o funcionamento do todo, de forma que a remoção de
qualquer das partes faz com que ele cesse de funcionar.
Tais estruturas, eles argumentam, não poderiam evoluir
naturalmente, pois a sua função só iria emergir quando o todo estivesse
completo. Assim, como no caso do relógio de Paley, a existência desses
órgãos implica na existência de um ser superior que os teria
“desenhado”. Um dos exemplos favoritos é o do olho humano.
Não vou detalhar o conceito de
exaptação,
já mencionado nessa coluna anteriormente, ou argumentar que em princípio a evolução
do olho humano é bem entendida, tendo seu início em agrupamento de
células fotossensíveis que constituem olhos primitivos em organismos
menos complexos.
Em vez disso, prefiro discutir um ponto ressaltado por Neil de
Grasse Tyson, que é a enorme presunção, a incrível húbris de alguém
afirmar que, “se eu não entendo como o olho humano foi formado pela evolução, isso quer dizer que ninguém mais, agora ou no futuro, será capaz de entender isto”.
A ciência não funciona dessa maneira. Sabemos que o nosso
conhecimento científico atual é finito e circundado por um perímetro de
ignorância. Quando, ao ponderar sobre um problema, esbarramos nesse
perímetro, nós, cientistas, tentamos empurrá-lo, aumentá-lo, alargá-lo, e
não simplesmente cruzar os braços e dizer que “eu não entendo aquilo,
não sei como funciona, é complicado demais para qualquer humano
entender, logo deve ser o produto de uma inteligência superior”.
Termino com um parágrafo de
Tyson
(minha tradução):
“A ciência é uma filosofia de descoberta. O desenho
inteligente é uma filosofia de ignorância. Não é possível construir um
programa de descoberta baseado na premissa que ninguém é inteligente o
suficiente para encontrar a resposta a um problema. Tempos atrás, as
pessoas apontavam o deus Netuno como a fonte das tempestades no mar.
Hoje, sabemos quando e onde elas começam. Sabemos o que as alimenta.
Sabemos o que pode mitigar seu poder destrutivo. E qualquer pessoa que
já estudou o aquecimento global pode contar o que as faz se agravarem.
As únicas pessoas que ainda chamam furacões de ’atos de Deus‘ são as que
escrevem as apólices das companhias de seguro.”
Sergio Danilo Pena
Professor Titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia
Universidade Federal de Minas Gerais
08/10/2009
Fonte: Ciência Hoje
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