Na
coluna de junho
, desconstruí algumas das narrativas evolucionárias usadas por fundamentalistas darwinianos que enxergam a
evolução
apenas em termos de seleção natural. Fora do contexto das minhas
colunas anteriores, alguns leitores interpretaram erroneamente que eu
estava fazendo uma crítica à própria teoria da
evolução.
Como certamente não era esta a minha intenção, dedico o artigo deste
mês à tentativa de dar maior nitidez às minhas idéias, fazendo o elogio
do pluralismo evolucionário.
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Alguns membros notórios da "Confraria dos
Pluralistas Evolucionários": a partir do alto à esquerda, em sentido
horário: o inglês Charles Darwin (1809-1882), o americano Sewall Wright
(1889-1988), o japonês Motoo Kimura (1924-1994), o americano Richard
Lewontin (1929-), o italiano Luigi Luca Cavalli-Sforza (1922-) e o
americano Stephen Jay Gould (1941-2002).
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Stephen Jay Gould definiu como pluralistas evolucionários – uma longa
lista de pensadores que inclui o próprio Charles Darwin (!) – os que
vêem a seleção natural como o mecanismo mais importante de
evolução, mas valorizam a relevância adicional de outros princípios biológicos, como a
deriva genética
, ao mesmo tempo em que aceitam um papel significativo da
contingência histórica
na determinação dos caminhos da
evolução biológica.
Segundo Gould, a psicologia evolutiva e a sociobiologia
poderiam se tornar muito mais frutíferas e relevantes se abrissem mão da
insistência em explicações evolucionárias unicamente baseadas em
adaptações produzidas pela seleção natural e adotassem uma gama plural
de alternativas evolucionárias.
Como mencionado em recente
resenha
do evolucionista americano Daniel Hartl, a ênfase exclusiva na seleção natural empobrece todo o estudo da
evolução.
Seria como basear toda a química apenas nas teorias de ligações
covalentes, ignorando ligações iônicas, pontes de hidrogênio, interações
de van der Waals e o efeito hidrofóbico. Ou tentar explicar toda a
física apenas com a força gravitacional, abrindo mão da força nuclear
fraca, da força nuclear forte e do eletromagnetismo.
É inegável a importância da seleção natural na
evolução
genômica. Mas é impossível entender a arquitetura do genoma humano sem
levar em conta mecanismos variados de mutação (inserções, deleções,
transposições), recombinação (incluindo recombinação desigual e
conversão gênica) e deriva genética. Muitas das características do nosso
genoma, como por exemplo a variação no conteúdo das bases C + G
(citosina e guanina), parecem depender muito mais da natureza do
processo mutacional do que da seleção natural.
O projeto Encode
Novidades recentes do campo da genômica revelam o pluralismo
evolucionário como absolutamente essencial para uma visão integrada da
biologia genômica humana. Refiro-me especificamente ao primeiro
relatório do projeto piloto Encode, sigla em inglês para Enciclopédia de
Elementos do DNA. O projeto foi o artigo de capa da edição de 14 de
junho de 2007 da revista
Nature
(clique
aqui
para baixar o arquivo, que tem 4,5 Mb). Para melhor entendê-lo, temos de revisar alguns conceitos.
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Enciclopédia genômica: a meta do Projeto Encode (
Encyclopedia of DNA elements
) é criar um catálogo completo de todos os elementos funcionais do genoma humano.
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Em abril de 2003 terminou a fase de seqüenciamento do Projeto Genoma
Humano. Mais de 99% dos 2,9 bilhões de pares de base que constituem a
porção eucromática do genoma humano já haviam sido seqüenciados com uma
exatidão superior a 99,9%. Como já discutimos
em outra coluna
, é intrigante que os genes que codificam proteínas sejam
escassos, representando menos de 2% do total dessa imensidão de DNA.
Especialmente constitui uma lição de humildade verificar que o ser
humano tem aproximadamente o mesmo número de genes para proteínas –
cerca de 20.000 – do que simples vermes ou pequenas plantas.
Com a descoberta de uma variedade crescente de RNAs celulares
que não são traduzidos em proteínas e estão envolvidos em regulação
genética e epigenética, cresceu a suspeita de que partes mais
substanciais do genoma estavam envolvidas na transcrição destes RNAs.
Essa hipótese recebeu considerável suporte de experimentos
que mostraram grandes similaridades de seqüência (conservação) de
porções não-codificadoras do genoma de vários mamíferos. A propósito,
uma regra de ouro em ciência genômica é que porções conservadas entre
espécies devem ter importância funcional, senão já teriam divergido como
conseqüência de mutações aleatórias.
Para ampliar o entendimento dos detalhes funcionais do genoma
humano, foi iniciado em 2003 o projeto piloto Encode, que reúne 308
cientistas de 35 laboratórios em 10 países. O projeto piloto escrutinou a
atividade de transcrição genética em um segmento de 30 milhões de pares
de base, o que corresponde a cerca de 1% do genoma humano, usando para
isso microarranjos de expressão gênica (
microarrays
), seqüenciamento de DNA e análises bioinformáticas.
Complexidade inesperada
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O número de junho de 2007 do periódico
Genome Research
dedicado ao Projeto Encode deve tornar-se um marco histórico na biologia humana.
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Os resultados do programa piloto, ansiosamente aguardados, foram
finalmente publicados no mês passado em um número especial do periódico
Genome Research
, com um resumo dos achados aparecendo na
Nature
. Valeu a pena esperar: o projeto trouxe à luz complexidades
inesperadas, a mais contundente delas sendo que o genoma humano parece
ser muito mais amplamente transcrito em RNA do que era anteriormente
suspeitado – a maioria das bases do genoma humano mostrou estar
associada com pelo menos um transcrito primário.
Existe uma estória envolvendo o historiador inglês Edward Gibbon (1737-1794), o famoso autor de
Declínio e queda do império romano
, obra em nada menos que oito volumes e quase três mil páginas! Encontrando-se com ele, o Rei George III exclamou: "
Scribble, scribble, scribble; Mr. Gibbon, I perceive, sir, you are always a-scribbling.
" (Escrevinhando, escrevinhando, escrevinhando, Sr. Gibbon,
noto que o senhor está sempre a escrevinhar). Pois bem, parece que o
nosso genoma é igualmente ocupado, transcrevendo, transcrevendo, sempre
transcrevendo... O porquê de tanta transcrição, ainda não sabemos.
Mas uma pista fascinante foi a descoberta de que não há uma
correspondência direta entre as regiões conservadas comuns ao homem,
camundongo, rato e cachorro e as regiões de atividade transcricional do
genoma humano. Cerca de 40% das regiões com conservação de seqüência
entre diferentes mamíferos não são ativamente transcritas. Por outro
lado, cerca de 50% das regiões ativas do genoma não apresentam
conservação entre espécies diferentes ou entre diversas populações
humanas.
A explicação dada pela equipe do Projeto Encode para essa
observação foi a seguinte: “Acreditamos que há [no genoma] uma proporção
considerável de elementos bioquimicamente ativos neutros, que não
conferem nenhuma vantagem ou desvantagem seletiva ao organismo. Esse
conjunto neutro de elementos de seqüência [de DNA] pode se modificar
durante a
evolução, emergindo
por certas mutações e desaparecendo por outras. [...] a partir desse
conjunto neutro, ocasionalmente alguns elementos podem adquirir um papel
biológico e assim cair nas malhas de seleção natural.” Em outras
palavras, uma explicação evolucionariamente pluralista!
Continuamos a evoluir?
Em resumo, assumir o pluralismo evolucionário significa
manter a mente aberta a diversas explicações possíveis para fenômenos
evolutivos, em vez de automaticamente invocar sempre a seleção natural. O
que me lembra uma frase do imortal personagem detetive Charlie Chan,
que declarou com seu sotaque característico no filme
Charlie Chan no Circo
, de 1936: “mente igual pára-quedas, só funciona aberta!”
Talvez essa resistência de alguns em aceitar a importância de fenômenos
aleatórios, não-deterministas, como a deriva genética e a contingência,
seja paradigmática, como já discutimos
anteriormente
.
Assim, mantendo a mente aberta, eu gostaria de destacar
finalmente o fato que nós, humanos, não evoluímos apenas biologicamente,
mas também culturalmente. A
evolução por seleção natural é um processo lento, gradual e por certo a nossa espécie continua a evoluir como tal. Entretanto, o
Homo sapiens
desenvolveu uma maneira muito mais rápida e eficiente de evoluir: a cultura.
Nos últimos 12 mil anos – um átimo em escala geológica –,
evoluímos de uma espécie relativamente pouco importante de primatas à
espécie dominante da Terra, inclusive com o inusitado poder de destruir a
si própria e a todas as outras formas de vida no planeta. O mecanismo
que possibilitou essa transição foi a
evolução
cultural. Enquanto a herança genética se passa de maneira lenta,
verticalmente, de geração em geração, a cultura se espalha
verticalmente, horizontalmente e transversalmente, com a eficiência de
um vírus.
Em alguns aspectos, a
evolução cultural age mesmo antagonicamente, contra a corrente da
evolução
biológica. É o caso do progresso da própria medicina. Por exemplo, a
pediatria propicia a sobrevivência e conseqüente reprodução de
indivíduos que nos primórdios da
evolução
da nossa espécie teriam morrido na infância. Também a reprodução
assistida com a injeção intracitoplasmática de precursores de
espermatozóides permite a reprodução de indivíduos anteriormente
estéreis.
Pela herança cultural, a humanidade pode assim assumir o controle de sua própria
evolução.
Repito resumidamente aqui as palavras do filósofo italiano Pico della
Mirandola (1463-1494) já citadas na coluna do mês passado: “Existem na
natureza outras espécies que obedecem a leis por mim estabelecidas. Mas
tu, que não conheces qualquer limite ... te defines a ti próprio ... [ao
homem] é concedido obter o que deseja, ser aquilo que quer ... Quem não
admirará este camaleão?”.
Sergio Danilo Pena
Professor Titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia
Universidade Federal de Minas Gerais
13/07/2007
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