terça-feira, 11 de dezembro de 2012

O pluralismo evolucionário e o projeto Encode

Mapeamento de elementos funcionais do genoma revela complexidade da evolução, mostra colunista
Por: Sergio Pena
Publicado em 13/07/2007 | Atualizado em 11/12/2009
 
Na coluna de junho , desconstruí algumas das narrativas evolucionárias usadas por fundamentalistas darwinianos que enxergam a evolução apenas em termos de seleção natural. Fora do contexto das minhas colunas anteriores, alguns leitores interpretaram erroneamente que eu estava fazendo uma crítica à própria teoria da evolução. Como certamente não era esta a minha intenção, dedico o artigo deste mês à tentativa de dar maior nitidez às minhas idéias, fazendo o elogio do pluralismo evolucionário.

Alguns membros notórios da "Confraria dos Pluralistas Evolucionários": a partir do alto à esquerda, em sentido horário: o inglês Charles Darwin (1809-1882), o americano Sewall Wright (1889-1988), o japonês Motoo Kimura (1924-1994), o americano Richard Lewontin (1929-), o italiano Luigi Luca Cavalli-Sforza (1922-) e o americano Stephen Jay Gould (1941-2002).
Stephen Jay Gould definiu como pluralistas evolucionários – uma longa lista de pensadores que inclui o próprio Charles Darwin (!) – os que vêem a seleção natural como o mecanismo mais importante de evolução, mas valorizam a relevância adicional de outros princípios biológicos, como a deriva genética , ao mesmo tempo em que aceitam um papel significativo da contingência histórica na determinação dos caminhos da evolução biológica.

Segundo Gould, a psicologia evolutiva e a sociobiologia poderiam se tornar muito mais frutíferas e relevantes se abrissem mão da insistência em explicações evolucionárias unicamente baseadas em adaptações produzidas pela seleção natural e adotassem uma gama plural de alternativas evolucionárias.

Como mencionado em recente resenha do evolucionista americano Daniel Hartl, a ênfase exclusiva na seleção natural empobrece todo o estudo da evolução. Seria como basear toda a química apenas nas teorias de ligações covalentes, ignorando ligações iônicas, pontes de hidrogênio, interações de van der Waals e o efeito hidrofóbico. Ou tentar explicar toda a física apenas com a força gravitacional, abrindo mão da força nuclear fraca, da força nuclear forte e do eletromagnetismo.

É inegável a importância da seleção natural na evolução genômica. Mas é impossível entender a arquitetura do genoma humano sem levar em conta mecanismos variados de mutação (inserções, deleções, transposições), recombinação (incluindo recombinação desigual e conversão gênica) e deriva genética. Muitas das características do nosso genoma, como por exemplo a variação no conteúdo das bases C + G (citosina e guanina), parecem depender muito mais da natureza do processo mutacional do que da seleção natural.

O projeto Encode
Novidades recentes do campo da genômica revelam o pluralismo evolucionário como absolutamente essencial para uma visão integrada da biologia genômica humana. Refiro-me especificamente ao primeiro relatório do projeto piloto Encode, sigla em inglês para Enciclopédia de Elementos do DNA. O projeto foi o artigo de capa da edição de 14 de junho de 2007 da revista Nature (clique aqui para baixar o arquivo, que tem 4,5 Mb). Para melhor entendê-lo, temos de revisar alguns conceitos.

Enciclopédia genômica: a meta do Projeto Encode ( Encyclopedia of DNA elements ) é criar um catálogo completo de todos os elementos funcionais do genoma humano.
Em abril de 2003 terminou a fase de seqüenciamento do Projeto Genoma Humano. Mais de 99% dos 2,9 bilhões de pares de base que constituem a porção eucromática do genoma humano já haviam sido seqüenciados com uma exatidão superior a 99,9%. Como já discutimos em outra coluna , é intrigante que os genes que codificam proteínas sejam escassos, representando menos de 2% do total dessa imensidão de DNA. Especialmente constitui uma lição de humildade verificar que o ser humano tem aproximadamente o mesmo número de genes para proteínas – cerca de 20.000 – do que simples vermes ou pequenas plantas.

Com a descoberta de uma variedade crescente de RNAs celulares que não são traduzidos em proteínas e estão envolvidos em regulação genética e epigenética, cresceu a suspeita de que partes mais substanciais do genoma estavam envolvidas na transcrição destes RNAs.

Essa hipótese recebeu considerável suporte de experimentos que mostraram grandes similaridades de seqüência (conservação) de porções não-codificadoras do genoma de vários mamíferos. A propósito, uma regra de ouro em ciência genômica é que porções conservadas entre espécies devem ter importância funcional, senão já teriam divergido como conseqüência de mutações aleatórias.

Para ampliar o entendimento dos detalhes funcionais do genoma humano, foi iniciado em 2003 o projeto piloto Encode, que reúne 308 cientistas de 35 laboratórios em 10 países. O projeto piloto escrutinou a atividade de transcrição genética em um segmento de 30 milhões de pares de base, o que corresponde a cerca de 1% do genoma humano, usando para isso microarranjos de expressão gênica ( microarrays ), seqüenciamento de DNA e análises bioinformáticas.

Complexidade inesperada
O número de junho de 2007 do periódico Genome Research dedicado ao Projeto Encode deve tornar-se um marco histórico na biologia humana.
Os resultados do programa piloto, ansiosamente aguardados, foram finalmente publicados no mês passado em um número especial do periódico Genome Research , com um resumo dos achados aparecendo na Nature . Valeu a pena esperar: o projeto trouxe à luz complexidades inesperadas, a mais contundente delas sendo que o genoma humano parece ser muito mais amplamente transcrito em RNA do que era anteriormente suspeitado – a maioria das bases do genoma humano mostrou estar associada com pelo menos um transcrito primário.

Existe uma estória envolvendo o historiador inglês Edward Gibbon (1737-1794), o famoso autor de Declínio e queda do império romano , obra em nada menos que oito volumes e quase três mil páginas! Encontrando-se com ele, o Rei George III exclamou: " Scribble, scribble, scribble; Mr. Gibbon, I perceive, sir, you are always a-scribbling. " (Escrevinhando, escrevinhando, escrevinhando, Sr. Gibbon, noto que o senhor está sempre a escrevinhar). Pois bem, parece que o nosso genoma é igualmente ocupado, transcrevendo, transcrevendo, sempre transcrevendo... O porquê de tanta transcrição, ainda não sabemos.

Mas uma pista fascinante foi a descoberta de que não há uma correspondência direta entre as regiões conservadas comuns ao homem, camundongo, rato e cachorro e as regiões de atividade transcricional do genoma humano. Cerca de 40% das regiões com conservação de seqüência entre diferentes mamíferos não são ativamente transcritas. Por outro lado, cerca de 50% das regiões ativas do genoma não apresentam conservação entre espécies diferentes ou entre diversas populações humanas.

A explicação dada pela equipe do Projeto Encode para essa observação foi a seguinte: “Acreditamos que há [no genoma] uma proporção considerável de elementos bioquimicamente ativos neutros, que não conferem nenhuma vantagem ou desvantagem seletiva ao organismo. Esse conjunto neutro de elementos de seqüência [de DNA] pode se modificar durante a evolução, emergindo por certas mutações e desaparecendo por outras. [...] a partir desse conjunto neutro, ocasionalmente alguns elementos podem adquirir um papel biológico e assim cair nas malhas de seleção natural.” Em outras palavras, uma explicação evolucionariamente pluralista!

Continuamos a evoluir?
Em resumo, assumir o pluralismo evolucionário significa manter a mente aberta a diversas explicações possíveis para fenômenos evolutivos, em vez de automaticamente invocar sempre a seleção natural. O que me lembra uma frase do imortal personagem detetive Charlie Chan, que declarou com seu sotaque característico no filme Charlie Chan no Circo , de 1936: “mente igual pára-quedas, só funciona aberta!” Talvez essa resistência de alguns em aceitar a importância de fenômenos aleatórios, não-deterministas, como a deriva genética e a contingência, seja paradigmática, como já discutimos anteriormente .

Assim, mantendo a mente aberta, eu gostaria de destacar finalmente o fato que nós, humanos, não evoluímos apenas biologicamente, mas também culturalmente. A evolução por seleção natural é um processo lento, gradual e por certo a nossa espécie continua a evoluir como tal. Entretanto, o Homo sapiens desenvolveu uma maneira muito mais rápida e eficiente de evoluir: a cultura.

Nos últimos 12 mil anos – um átimo em escala geológica –, evoluímos de uma espécie relativamente pouco importante de primatas à espécie dominante da Terra, inclusive com o inusitado poder de destruir a si própria e a todas as outras formas de vida no planeta. O mecanismo que possibilitou essa transição foi a evolução cultural. Enquanto a herança genética se passa de maneira lenta, verticalmente, de geração em geração, a cultura se espalha verticalmente, horizontalmente e transversalmente, com a eficiência de um vírus.

Em alguns aspectos, a evolução cultural age mesmo antagonicamente, contra a corrente da evolução biológica. É o caso do progresso da própria medicina. Por exemplo, a pediatria propicia a sobrevivência e conseqüente reprodução de indivíduos que nos primórdios da evolução da nossa espécie teriam morrido na infância. Também a reprodução assistida com a injeção intracitoplasmática de precursores de espermatozóides permite a reprodução de indivíduos anteriormente estéreis.

Pela herança cultural, a humanidade pode assim assumir o controle de sua própria evolução. Repito resumidamente aqui as palavras do filósofo italiano Pico della Mirandola (1463-1494) já citadas na coluna do mês passado: “Existem na natureza outras espécies que obedecem a leis por mim estabelecidas. Mas tu, que não conheces qualquer limite ... te defines a ti próprio ... [ao homem] é concedido obter o que deseja, ser aquilo que quer ... Quem não admirará este camaleão?”.


Sergio Danilo Pena
Professor Titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia
Universidade Federal de Minas Gerais
13/07/2007
 
Fonte: Ciência Hoje

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