De como Charles Darwin concebeu A Origem das Espécies e aprofundou suas teses
Carlos Graieb
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Enquanto escrevia A Origem das Espécies, Darwin se viu atormentado por uma dúvida: abordar ou não a evolução humana. Ele sabia que os religiosos atacariam violentamente o livro. Falar sobre o homem era jogar mais lenha na fogueira. Assim, ele apenas deixou implícito que os humanos tinham evoluído de ancestrais primitivos, em vez de ter sido sido criados "à imagem e semelhança de Deus". Uma discussão minuciosa só veio bem mais tarde, com os dois volumes de A Descendência do Homem (1871) e, posteriormente, com A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais. Este último, lançado em 1872, visava à derrubada de um tabu: o de que apenas os homens podem externar emoções, pois seu rosto foi esculpido para expressar "as coisas sutis do espírito". A primeira parte da argumentação no livvro talvez pareça banal, mas não era tão fácil de engolir 130 anos atrás. Observando animais domésticos e selvagens, Darwin demonstra que a habilidade de expressar emoções não é algo que torne os humanos especiais, pelo contrário: é algo que compartilhamos com todos os outros bichos. A segunda parte do argumento é mais importante. Ela diz que os "movimentos expressivos" também são fruto da evolução, ou seja, se consolidaram nas espécies ao longo do tempo. Segundo Darwin, o fato de as expressões humanas serem as mesmas entre ingleses e nativos da Polinésia não quer dizer que todos foram "criados iguais", mas sim que são descendentes de um mesmo ancestral.
Darwin passou uma década procurando a melhor forma de abordar "o problema do homem". Foram precisos quase vinte anos para que ele desse forma à teoria da evolução. No volume de sua correspondência, há páginas fundamentais sobre seu método de trabalho, suas dúvidas e certezas. Em 1844, por exemplo, ele fez suas primeiras confissões a um colaborador: "Estou quase convencido de que as espécies não são (isto é como confessar um assassinato) imutáveis". Mas há muito mais nas cartas: opiniões políticas, relatos de viagem, intimidades. Por meio delas pode-se constatar, por exemplo, o ferrenho antiescravismo de Darwin. No campo das viagens, a mais importante é sem dúvida a que ele empreendeu a bordo do Beagle, um navio que o trouxe aos trópicos, onde recolheu amostras de flora e fauna e teve os primeiros lampejos da teoria da evolução. No trajeto, Darwin passou pelo Brasil. Aportou na Bahia e no Rio de Janeiro e, em 1º de março de 1832, fez uma descrição de Salvador, deixando-se contaminar pelo espírito da terra: "Dá vontade de levar uma vida sossegada numa região assim". Um dos aspectos mais curiosos da vida de Darwin foi sua saúde: ele sofria com misteriosas dores de estômago, tinha tremores e vômitos incontroláveis. As causas dessa doença nunca foram esclarecidas, mas a epopéia estomacal está toda registrada nas cartas.
O século XX foi pródigo na derrubada de totens. Karl Marx veio ao chão com o Muro de Berlim. Sigmund Freud ficou capenga, pois muitas de suas hipóteses não puderam ser comprovadas. Mas Darwin resistiu e resiste aos ataques mais duros. Hoje, a maioria de seus opositores se reúne sob o rótulo do criacionismo. Eles continuam defendendo a idéia de que Deus criou as formas de vida tais como elas são. De tempos a tempos, até obtêm uma vitória política. Em 1999, no Estado americano do Kansas, impediram por lei que a evolução fosse ensinada em algumas escolas. Mas, no campo estritamente científico, não adianta espernear: a biologia é uma disciplina darwinista. A cada dia surgem novas linhas de estudo ancoradas no darwinismo. Os pesquisadores podem até discordar em minúcias. Uns dizem que a evolução é gradual; outros, que ela ocorre em saltos. Mas um ponto ninguém põe em questão. E ele é justamente a genialidade de Darwin.
Fonte: Veja, 15/03/2000
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